quarta-feira, 5 de maio de 2010

Adália e Amélio

Adália era uma adulta já compromissada com o seu lado profissional. Uma brilhante advogada trabalhista, se esforçava cada dia e cada noite para cada vez mais saber mais, para poder finalmente fazer sua tão sonhada prova para a Justiça do Trabalho. Tinha um sonho dentro de si: desejava a árdua e extremamente desafiadora carreira da magistratura federal nesta área específica.

Tinha dois romeus na sua vida, mas romeus sem muito graça. Um era um antigo namorado que nem mais a deixava com friozinho na barriga. Outro era uma rapaz que conheceu ainda na época de estágio da faculdade quando o mesmo também estagiava na Defensoria Pública Estadual. Ele era estudante de psicologia e eles sempre conversavam, trocavam algumas confidências. Nada passando, até aquele momento, de tensão.

Adália conseguiu seu tento, após árduas provas. Suava frio na prova oral e, por muito pouco, não foi classificada por uma pergunta simples de classificação do objeto. Era um peixe. Parou para pensar nas várias possibilidades sobre como seria aquele peixe específico do desembargador-examinador. Perguntou para ele qual o tipo do peixe e ele simplesmente falou para ela prosseguir e "parar de engabelação e dar prosseguimento com a resposta".

Ela, porém, saiu-se mais sagaz que o seu examinador e especificou que poderia ser fungível se fosse um peixe qualquer, em larga escala na natureza. Infungível se ele fosse objeto de manipulação genética, tornando-o único por seu tipo, sua longevidade genética ampliada e tendo o seu processo sido destruído. Seria consumível, com certeza absoluta. Seria divisível se fosse somente ele, mas indivisível se fosse ele parte de um cardume no qual ele fosse o reprodutor e diferencial pelo pacote inteiro a ser vendido.

Alguém tão sagaz deste jeito mereceria uma sorte melhor no amor. Grande surpresa foi que dispensou o ex-namorado com uma rapidez meteórica, sem a menor afeição: sempre lembrou da tristeza ao se sentir menosprezada por ele e tratou-o com a mesma desafeição - mas com mais dignidade. Sua vida continuou a se desenrolar, até um dia em uma sessão específica sob seu Tribunal.

A reclamação trabalhista era de uma faxineira que trabalhava em uma hospedagem que tinha quartos extremamente baratos, porém não realizava qualquer função de arrumação em que desse lucro para a contratante. A contratante (uma senhorinha de seus oitenta anos) somente a havia contratado para arrumar a cozinha e fazer-lhe comida e companhia. A alegação era de que, na verdade, ela era empregada doméstica e não uma faxineira. O curioso foi a testemunha chamada.

Um jovem ator - aparentando seus vinte e cinco anos - também interessado em música foi chamado para testemunhar. Chamou a atenção de Adália o jeito como ele não se sentia intimidado com o depoimento. Normalmente, vi testemunhas nervosas, com o medo de serem aterrorizadas a qualquer momento ou serem colocadas para fora dali direto para a prisão, mas não aquele rapaz. Adália sorriu-se e pensou que não era muito mais velha do que ele, apenas cinco anos.

Quando ele sentou para testemunhar, casou uma estranheza enorme em Adália. Chamou-a de dona, dizendo que a faxineira nem ia tanto lá assim, só duas vezes por semana e ainda cozinhava mal para a dona Gioconda. Ele próprio, Amélio, tinha que por vezes ir para a cozinha fazer um almoço para ela. Ele dizia que pagava sua hospedagem arrumando os quartos de lá porque sua banda, Ensaia mas não fatura, estava passando por uma crise; mas que iria tocar na Lapa e que a dona juíza estava convidada.

Um constrangimento abateu-se sobre a sala e Adália apenas pigarreou. Deixou prosseguir a sessão, negando peremptoriamente o pedido da reclamante; alertou-a para não brincar com o judiciário e ameaçou de denunciar o advogado dela por tentar manipular dolosamente a sua cliente. Ela nunca tinha feito isto antes e considerava um choque tal atitude.

Na saída, esbarrou com Amélio. Reparou que ele usava uma calça jeans rasgada, com vários detalhes. Camisa e tênis brancos, barba por fazer e olhos castanhos. Sentiu como se fosse uma heresia aquele rapaz entrar assim em um lugar onde a Justiça era decidida e o repreendeu por se vestir daquele jeito. Ele sorriu, um sorriso largo. Adália não entendeu nada e muito menos não esperava o que estava por vir.

-"Dona juíza..." - dizia ele, " Eu não a repreendo por usar essas roupas caretas, mas entendo que precise porque necessita passar uma imagem de uma pessoa séria. Mas não esquenta: dá pra sacar que você sabe das coisas e principalmente desses negócios de lei. Só acho que não importa muito o que se usa... Mas quem está do nosso lado. Yves Saint Laurent dizia que para a mulher ser bela, basta usar um suéter negro, uma saia negra e estar do lado do homem que ama. Citei-o porque percebo que eu tailleur é de lá. Bela peça."

Assombrou-se com isto, e ainda mais com o que veio a seguir. Ele continuou: -"Sei que está triste e assoberbada de trabalho, mas se for até o bar em que irei tocar prometo que irá se divertir de uma maneira como nunca antes. Apareça lá e prometo que vai ser inesquecível." Terminou está frase fitando-a nos olhos, o que gerou em Adália um certo encolhimento em sua própria casca de defesa. Nisto, ele partiu.

Na sexta-feira, ela compareceu ao lugar, incomodada com o ambiente. Usava um salto alto elegante, porém com uma calça jeans e a blusa mais moderninha que tinha em seu guarda-roupa, o que a fazia simplesmente destoar de todo aquele lugar. Quando ficou por mais um minuto lá dentro, desistiu de continuar com aquele história maluca - não iria deixar um desconhecido afetá-la tanto assim e resolveu ir embora.

Nesta virada, esbarrou com Amélio. Ele abriu um outro largo sorriso, diferente do anterior, porém ainda de leitura indefinida para a nossa heroína. Ela sorriu, meio constrangida e disse:

-"Oi. Acabei passando por aqui..."

-"Ah, que bom que você veio. Fico feliz mesmo! Anh... Tem que te chamar de dona juíza aqui também?" Riu daquele situação de ansiedade que transpirava, e esperou como se esperasse a reação de um experimento científico enquanto se coloca uma outra variável caótica em meio a este busca.

Adália sorriu, tímida e até enrubescida com um galanteio tão desordenado. Disse que não precisava ser chamada assim nem ali, nem no tribunal. E que ali, especificamente, poderia ser somente Adália. Ele a cumprimentou, com um abraço e um beijo no rosto, o que fez com que a temperatura de Adália subisse um pouco mais. Ele a levou até uma mesa perto do que parecia ser um projeto mal acabado de palco e cumprimentou o público.

Leu duas poesias de Vinícius de Moraes e começou a tocar Wando. Passou por Fagner, Caetano e Gil. Tinha um jeito diferente e inusitado de retratar aquelas canções, por vezes usando referencias de máscaras e outras pequenas variações em instrumento improvisados, como se fosse a primeira vez que a música estivesse saindo. Ao final do show, ele se dirigiu ao bar, ainda com a banda no palco, e começou a gritar e aplaudir como um alucinado pedindo um bis.

Todos riram e entraram na onda, até mesmo Adália. Ela sentiu como se tivesse sendo alvo de um olhar específico, mas não deu-se por rogada. Pediu bis e até assoviou. Não sabia se era o vinho que havia ali tomado, mas estava realmente mais a vontade com aquele situação. Nisto, quando ia pegar seu copo, sentiu uma mão tocando a sua e levando-a para o palco. Ela tentou resistir, mas deixou-se levar.

Amélio a sentou em um banco alto de bar e a banda começou a introdução. Ele começou a cantar "Todo amor que houver nesta vida". O bar todo estava escuro e um holofote somente ficava iluminando Adália. Sua vaidade aflorou-se e sentiu-se realmente o centro das atenções daquela noite. Sentia que cada palavra proferida por Amélio era para ela. A execução foi perfeita... Os aplausos duram alguns minutos, tempo em que pegou Adália e a fez agradecer; ao microfone falou: -"Agradeçam a minha musa inspiradora que me fez esta catarse hoje. Obrigado"

Adália não mais entendia nada. Foi sentar-se na sua mesa enquanto Amélio conversava com sua banda. Foi até o bar, pegou um dinheiro (que seria o da apresentação) e dividiu-o entre a banda. Chegou na mesa dela e falou que a iria levar para jantar e que ele pagaria desta vez, como uma prova de que havia um outro novo mundo que ela ignora e que a estava fascinando cada vez mais.

Foram comer um cachorro quente na esquina, uma das melhores coisas que ela havia experimentado, embora a maionese estivesse com uma procedência duvidosa. Ao acabar, recebeu uma rosa vermelha de Amélio. Olhando fundo nos seus olhos, ele a entregou de uma maneira tão romântica e leve que Adália, naquele momento, é quem havia abaixado todas as suas defesas e se entregue para ele. Beijaram-se ali, com gosto de mostarda e catchup, sabor da paixão e um desejo meio guardado, meio escondido... Mas integralmente se doando um para o outro.

Riram daquela situação, enquanto ele, após o beijo, limpava gentilmente seu lábio na parte superior esquerda da mostarda que havia sobrado com os dedos. Ela, em um gesto avançado e inesperado, beijo seus dedos sujos do condimento. Agora o sorriso na boca de Amélio era de desejo, não mais de estarem sem jeito um com o outro. Aquele beijo magicamente tinha aberto as portas da alma de um para o outro e erigido uma das mais belas pontes projetadas em tão pouco tempo.

Amaram-se loucamente dentro do carro de Adália, em um cantinho escondido, perto de uma grande casa. Trocaram confidências, risadas, carícias e desejos. Conversaram coisas amenas enquanto se recuperavam para mais uma rodada que durou várias rodadas de horas, até praticamente amanhecer. Exaustos demais, trocaram telefones e foram cada uma para o seu referencial de lar.

Adália dormiu completamente tocada pelo que havia acontecido. Quase não dormiu. Não tomou seu banho habitual pois desejava dormir com o cheiro daquele homem que a amara de uma maneira tão inusitada como nenhum outro homem jamais a amara. Resolveu, por via das dúvidas, entrar no msn para conversar com uma amiga sua de infância para tentar entender.

Neste ponto, conecta-se a rede o seu amigo psicólogo, recém-formado. Disse que estava no Paraná, morando lá e que seu noivado havia acabado. Queria voltar para o Rio de Janeiro para vê-la e desejava muito a ter em seus braços. Adália, que sempre se sentiu balançada por ele, sorriu ao ver tal declaração de uma maneira tão singela, porém aquém do que ela precisava naquele momento.

Embora o conhecesse há anos, sabia que poderia pisar em terreno mais tranquilo se ajustando ao seu amigo; refletiu e pensou que se até aquele momento não tinha tido a coragem nem de ter tido um pequeno romance com ele, embora estivesse noivo já à época da universidade, decidiu pedir para ele aguardar um pouco a decisão dela sobre se ele viria ou não para o Rio. Ele falou que já estava lá e queria encontrá-la no dia seguinte.

Dormiu. Confusa, teve pesadelos a noite toda, com partes boas e partes ruins em seus sonhos. Lembrou-se de algumas partes. Quando acordou, havia uma mensagem no seu celular. Desejou ver rápido do que se tratava e era uma mensagem de Amélio dizendo o quanto foi especial tê-la tido em seus braços e que desejaria a ver de novo em breve, mas que iria esperar agora ela o convidar.

Sorriu de sua ousadia, sentiu uma certa dose de narcisismo. Parou e ficou olhando a tela do celular. Eram dez horas da manhã e não sabia bem o que fazer. Resolveu tomar um banho para pensar melhor e arrumar-se para sair e almoçar na casa de sua mãe. Lá chegando, qual foi sua surpresa ao ver que o Fagundes estava lá. Sorriu, constrangida por aquela situação e todos sentaram-se a mesa para comer.

A sua mãe o elogiava constantemente, mas ela já o olhava de uma maneira meio distante. Olhou para ele não mais com aquela curiosidade baseada na volúpia, mas sim como se fosse um filme que tinha visto na infância e que era meramente um referencial de algo que já tinha passado, tomado o seu próprio trem da história em um trilho bem diferente do vagão desejado por Adália.

Pegou-se pensando no palco, enquanto o holofote somente a iluminava e a palavra musa veio em sua cabeça, ecoando junto com os aplausos e o gosto do beijo de Amélio. Despertou com sua mãe pigarreando, já retirando os pratos do almoço. Quando Fagundes tocou a sua mão, esperava sentir um calor, um arrepio de desejo. Percebeu que era uma mera expectativa de algo que lhe não tinha provado, mas era só. Fagundes percebeu isto e aproveitou a mesa vazia para perguntar o que havia acontecido.

-"Musa." - ela respondeu

-"Como assim musa?"

Ela sorriu para si mesma, sentindo um calor no seu coração. Falou que tinha encontrado alguém que tinha abalado as suas estruturas, mexia com ela de uma maneira que nem ele mexia com ela nos tempos de estágio. Relatou que sua noite havia sido mágica e que desejava mais noites mágicas como aquela, embora soubesse que a rotina poderia vir a lhe afligir a vida e que ele não tinha nenhuma segurança financeira. Fagundes, meio sem jeito, ainda tentou uma última investida, sem sucesso. Adália apenas tocou em sua mão, dando dois tapinhas.

Levantou-se da mesa e foi embora, se despedindo rapidamente de seus pais. Nem ao menos esperou o café que tanto gostava que sua mãe fizesse, com uma mistura de canela junto ao pó. Já fora do prédio dos seus pais, ligou para Amélio. Não sabia muito bem no que daria sua escolha - nunca tinha tomado uma atitude daquele jeito, mas sentia nele um fumus boni iuris e um periculum in mora de perder uma ótima oportunidade - e tinha decidido que desejava ser feliz, que desejava que aquele pequeno ator e poeta a torna-la mais e mais alegre a cada dia de sua vida - tinha, enfim, achado o seu romeu ideal.

0 comentários:

Postar um comentário

Obrigado pela contribuição! Brevemente a lerei e comentarei!

Template by - @Dudshp | desde 10/11/2009