quarta-feira, 28 de abril de 2010

Camargo e Mannuela

Camargo era um homem solitário. Preferia sempre o conforto de seu pequeno, porém cômodo lar. Voltava do trabalho para casa, raramente preferindo outros programas externos ao seu aconchegante lar. Ele era o lugar ideal para escutar o seu som, ver suas séries prediletas ou degustar seus livros. Tinha predileção e loucura por arte: era psicólogo, porém trabalhava como funcionário público.

Nunca tinha se casado. Preferia os relacionamento de curto prazo em que objetivava apenas o prazer temporário: tanto da companhia, quanto o sexual. Quando percebia que havia por parte de sua companheira momentânea em levar aquele relacionamento a um processo nível de comprometimento, ele a remetia para a pasta das ex-companheiras e seguia o seu ritmo de vida. Não que não sofresse, ele sofria. Mas preferia aquele sofrimento temporário do que a longo prazo sofrer mais quando fosse trocado ou traído. Tinha algo haver com o fato de na mais tenra infância sempre ter tido altas cobranças de sua figura materna; nunca achava-se bom o suficiente. Por isto, preferia a certeza de não ter do que a incerteza de ter algo finito.

Tinha ido, numa noite de sexta-feira, a um restaurante perto de casa. Queria tomar uma taça de vinho e comer alguma comida italiana. Gostava daqueles pequenos restaurantes que lembravam as cantinas italianas de São Paulo e tinha recém-descoberto este pequeno pedaço do paraíso e tinha resolvido ir até lá. Chegando, conseguiu uma mesa. Sentou-se no canto, para não ser notado.

Gostava muito de observar as pessoas, no seu cotidiano. Percebia um casal jantando, eram casados pelas alianças em seus dedos. Comiam e mastigavam como se fosse uma obrigação aquilo tudo, como se tudo o que fizessem juntos não passasse de uma corrente com uma bola de ferro atada a seus calcanhares. Sentiu até um gosto na sua boca de tristeza por aquilo, mas de satisfação por sempre se afastar no momento certo.

Enquanto Camargo levava seu cálice de vinho até a sua boca, parou no meio do caminho. Percebeu que uma mulher de vestido preto, com uma pele branca e cabelos negros como a noite o observava. Viu seus olhos, também negros, penetrarem na sua alma. Assustou-se momentaneamente com aquela visão e prefiriu ignorar e tomar a sua taça de vinho. Percebeu que ela deixou de observá-lo ao ver que lhe causou constrangimento.

Enquanto pedia sua refeição, observava aquele ser inusitado no balcão. Era pouco mais velha do que ele, mas aparentava uma jovialidade interna muito interessante. Exalava uma aura de sedução, porém contida por algum fato de sua infância, talvez? Algo bloqueado pela Lei imposta pela figura paterna a aquela mulher? Via como inclinava a cabeça para baixo para observar a feitura de suas mãos: eram finas, elegantes e usava um esmalte em tom claro para não chamar atenção.

Camargo levantou seu copo em direção a ela enquanto percebia que ela o fitava: não sabia se era o vinho ou se tinha tomado uma atitude ousada. Só uma resposta objetiva por parte dela lhe diria. E disse. Ela pegou sua taça de vinho e caminhou em direção a sua mesa. Ele gentilmente estendeu a mão e pediu para que ela sentasse. Cumprimentaram-se, a princípio formalmente. Conversaram por horas.

Ele descobriu que o nome dela era Mannuela e que, na verdade, o "n" a mais era pelo fato do funcionário do cartório estar bêbado ao tê-la registrado; descobriu que era uma médica muito bem capacitada profissionalmente. Tinha senso de humor, era bonita e inteligente. Como era inteligente... Conversaram sobre arte, sobre política e sobre comportamentos humanos: ela adorava os comportamentos humanos tanto quanto ele.

Os dois sentiram-se meio acuados neste ponto. Ela um pouco mais, pela sua timidez. Ele fingiu não perceber e continuou o assunto, desviando para o casal que tinha observado anteriormente. Ele perguntou se ela se via casada naquela situação. Ela disse que não mais, pois havia se separado do marido. Camargo pediu desculpa pela indiscrição de sua parte - ela, sorriu, abaixando ligeiramente a cabeça e falou para ele que tudo bem. Sua relação com o marido já havia acabado e ela, na verdade, estava saindo para comemorar só.

Camargo sorriu e disse que sempre é bom comemorar em companhia. Após algumas taças de vinho - ele tinha optado pelo vinho de Mannuela, um com tom leve e violáceo, mas nem tão doce - em algum momento que nenhum dos dois lembra, a mão de um tocou levemente a do outro. Camargo olhou para Mannuela e percebeu todos os sinais não-verbais vindo à superfície: sua respiração tinha apertado, pupilas dilatadas, ela inclinava a cabeça levemente para frente pedindo um contato, sudorese leve nas mãos e ruborização na face.

O contato desejado por Mannuela foi dado por Camargo, gentilmente. Tocou na sua mão outra vez, e fez um leve carinho por cima da mesa do restaurante. Ela olhou para aquele gesto tão singelo e sorriu de canto de boca, puxando levemente seus lábios para o canto direito. Camargo viu uma luz vindo de seu rosto: percebeu que eram seus dois brincos da orelha direita sendo refletidos pela luz daquela cantina.

Aproximou-se, então, de Mannuela, a qual cedia ao seu avanço de uma maneira doce. Estavam dançando, mesmo estando sentados, buscando facilitar o avanço de um para a direção do outro. Camargo sentiu cada vez mais forte o perfume de Mannu e desistiu de tudo. Apenas fechou seus olhos e inclinou sua cabeça. A única coisa que escutava era a batida do seu coração misturada com a batida do dela. Beijaram-se suavemente.

Após o primeiro contato de seus lábios, afastaram-se a uma curtíssima distância, o suficiente para os dois sorrirem um para o outro. O beijo tinha encaixado perfeitamente, parecia que suas bocas foram desenhadas uma para satisfazer o prazer da outra. E durante toda aquela noite, foi tudo o que nossos dois amantes se empenharam em fazer. Amaram-se de uma maneira tão fatigante que ficaram com dores por aquela semana.

Passaram a se encontrar toda a semana, nos finais de semana. Quando Mannu podia, claro... Ela estava sempre trabalhando demais como plantonista. Camargo esperava, sempre paciente, por mais um encontro com aquela mulher que o fascinava cada dia mais. Trocaram várias confidências, até mesmo coisas sobre as quais ele nunca tinha dito a nenhuma outra: suas experiências anteriores, seus medos... Até mesmo o seu TOC de colocar o volume das coisas sempre em múltiplo de três, tendendo a ser perfeito quando fosse múltiplo de nove.

Naquela sexta-feira chuvosa, Camargo apenas esperava. Sentia-se muito só ao observar a chuva que batia no vidro de sua janela. Olhou para a casam sentindo-se vazio e confuso. Pegou inúmeras vezes no telefone com a intenção de ligar para aquela pessoa que mexia verdadeiramente com ele. Não conseguia. Apertava e desligava. Não queria demonstrar que estava apaixonado por ela. Ele estava? Nem mais conseguia se enganar... Tinha passado daquele ponto em que dispensava as mulheres e havia se comprometido.

Largou o telefone, sentou-se na poltrona da sala e batuqueou com seus dedos sobre a mesa de madeira. Começou do seu dedo mínimo até o dedão e o fazia de maneira repetida. Refeltia o quanto tinha se envolvido com ela a ponto de não mais conseguir dispensá-la. Já era tarde demais para se ter danos mínimos, mas seria tarde demais para se evitar danos maiores, que poderiam abalar-lhe mais? Não, não era.

Pegou o telefone e discou para ela. Estava decidido a fazer aquilo, não aguentaria mais passar mais uma semana sem vê-la. Decidiu acabar com tudo ali. Ela atendeu com um "oi" disperso:

- "Liguei em má hora?" - perguntou ele, gentilmente

- "Não, não... Eu só..." - ficou reticente e ele resolveu não intervir... Resolveu dar a ela a oportunidade de lhe falar o que queria - "Eu posso ser sincera com você, meu lindo?"

- "Pode, claro, como habitualmente somos um com o outro." - Tremeu por dentro... Tinham uma sincronia fantasticamente de sentimentos e pensou que ela poderia estar sentindo o mesmo. Prendeu a respiração. Ficou angustiado... Mas lembrou que poderia ser melhor daquele jeito, terminar antes de que se ferissem mais.

- "Eu quero confessar que... Estou gostando de você. Mesmo. Não pensei que fosse gostar de alguma pessoa em tão pouco tempo, mas você se tornou muito especial em minha vida. Não queria me envolver neste momento, tudo confuso e indefinido para mim. Mas, posso lhe dizer qual a única certeza que tenho?"

- "Pode, Mannu, pode..." - Estava chocado com tanta sinceridade. Aquela mulher o surpreendia a cada pequeno movimento que tomava em relação a ele. Deixou-a falar mais, precisava ouvir mais dauqela voz, sentir-se acarinhado por aquelas mãos tão cuidadosas e firmes que tinha com seus pacientes.

- "Você é a única constância na minha vida hoje. Quero que continue assim. Nunca podemos prever o futuro, meu lindo. Sei que posso parecer confusa agora, mas sou extremamente racional quando tomo uma atitude, ainda mais na área de sentimento. Eu espero que você possa me entender e que possa me esperar." -Camargo perdeu o fôlego por um momento que pareceu uma eterniadade - "Está aí, meu lindo?"

-"Eu confesso que não esperava ouvir isto... Ainda mais deste jeito. Eu quero ser sincero com você também, posso?"

-"Claro." - Sentiu que agora era a voz dela que ficou trêmula e insegura, esperando o que viria dele.

-"Eu não queria ninguém que me comprometesse, que fizesse o que você fez comigo. Você me faz sentir um adolescente entusiasmado com a vida. Você me tocou de uma maneira tão sincera e bonita que dói não ter você perto de mim. A sua falta me faz até mal, mas eu posso dizer com todo certeza de que eu também gosto de você."

-"Eu não queria que fosse assim, que lhe causasse dor. Não queria lhe magoar..." - Foi interrompida por ele.

-"Só me dói porque gosto demais de você. Como nas peças de teatro, não sabemos como os personagens principais se apaixonam tão rápido, mas temos que continuar nesta barca. Sei que tem seus compromissos profissionais e sei que ama o que faz. Eu só tenho que ser mais paciente e esperar, certo?" - Disse isto, deixando escapar uma lágrima de emoção.

-"Meu lindo, você está chorando? Não queria lhe fazer mal..."

-"Choro de felicidade pelo que nós temos ser tão bonito e tão bom para nós. Gosto de você de verdade, viu minha paixão?"

Houve um silêncio, uma pausa para compreensão por parte dos dois sobre tudo aquilo que estava acontecendo. Mannu quebrou o silêncio:

-"Olha... Eu quero dizer que hoje não vamos nos encontrar, mas... Posso ir para a sua casa amanhã, pedirmos uma pizza e ficarmos só nós dois?"

-"Com uma condição."

-"Qual?"

-"Se pudermos tomar um vinho e termos sorvete de sobremesa."

-"Com calda?"

-"Não iria querer menos para quem me quer bem. E marshmallow."

-"Vou ansiar por cada minuto, viu meu lindo? Eu preciso ir internar um paciente... Mas eu te adoro muito. Você é muito importante para mim. Um beijo."

Despediu-se dela. Tinha tido a sua primeira certeza: ela realmente queria passar um bom tempo ao seu lado. Resolveu sentar-se no sofá atônito sobre tudo que havia acontecido. Iria aprender a lidar com aquela falta temporária por um longo relacionamento. Abriu uma garrafa de vinho, para lhe fazer companhia naquela noite com um bom livro. Tinha tido agora uma segunda certeza inconsciente sobre ela. Sorriu. Era o vinho preferido de sua amada.

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